As marcas da violência obstétrica em um corpo negro e autista

O racismo, o capacitismo e a desinformação atravessam o atendimento às mulheres nos serviços de saúde

23|10|2025

- Alterado em 23|10|2025

Por Jo Melo

Falar sobre parto, para mim, é sempre algo que não traz boas lembranças. Há quase 15 anos (idade atual do meu filho), eu engravidei. Era nova, não conhecia nada sobre plano de parto, violência obstétrica, parto humanizado e nem meus direitos como grávida.

Periférica e com pouca informação sobre o assunto, pude, depois de muitos anos, descobrir que vivi inúmeras violências que eu não teria passado se tivesse tido informação e um serviço público eficiente. Aliás, um serviço de qualidade, pois violência obstétrica não é uma exclusividade do serviço público.

Meu relato de parto

Meu trabalho de parto foi rápido, senti as contrações às 8h e às 11h55 meu pequeno nasceu. Mas neste meio tempo, senti muitas dores e foi aí que a violência começou.

Apesar das contrações e de já estar com as semanas completas, fiquei no soro com ocitocina; para quem não sabe, esse soro acelera o procedimento do parto. No dia, havia alguns estudantes de medicina; fui tocada por um deles sem minha autorização (o famoso exame de toque). Depois, fui para a sala onde o soro deveria fazer efeito. Minha bolsa não estourou naturalmente, então, a estouraram por mim no momento do parto.

Depois, fui para a sala de parto. Gritava de dor e não tive, em nenhum momento, palavras de conforto, pelo contrário, disseram que eu estava descontrolada e precisava de tratamento psicológico, dando a entender que estava louca.

Eu fazia muita força, mas meu filho não saía. Depois de muito tempo de dor, vieram duas enfermeiras de cada lado e fizeram força para baixo na minha barriga como quem estivesse espremendo o restinho de uma pasta de dente, ambas, basicamente, subiram em cima de mim, mas meu filho não saía, eu sentia muitas dores e chorava demais.

Então, sem saber muito o que estava acontecendo, senti como se meu filho tivesse sido puxado da minha vagina, acredito que neste momento foi quando fizeram a Episiotomia, eu não queria vê-lo no começo, só chorava de medo e, ao mesmo tempo de alívio, por aquele tormento ter passado. Foram limpá-lo, aí veio o dado: “Seu filho nasceu com 4,100kg”, (grande, né?). Olhei pra trás e não vi o pai dele (estava casada na época), e além de tudo ainda não o chamaram para assistir ao parto, apenas quando ele terminou. Então, fui costurada e enviada ao quarto.

Episiotomia e ponto do marido

Depois que todo o procedimento passou, não me informaram nada sobre o que tinha acontecido com meu corpo, eu sangrava bastante a cada mexida que dava, não me falaram se aquilo era normal ou não. Apenas quando eu perguntei, morrendo de medo que fosse morrer de tanto sangue que descia de mim, disseram que era a tal “sujeira do parto”, por assim dizer.

Fui para casa com pontos, dores e, na minha cabeça, um parto normal deveria ser muito mais tranquilo. Eu não sabia o que estava acontecendo, não conseguia usar o banheiro, sentia meus pontos me incomodando, não estava lindo e maravilhoso como eu via nos sites de bebê e dos relatos de parto de outras mulheres.

Sobre voltar a ter relações sexuais, demorei bem mais que a quarentena. Ainda me sentia insegura, mas depois de três meses, resolvi tentar e senti muita dor, era como se eu estivesse perdendo a virgindade de novo. Senti isso algumas vezes mesmo depois de ter tido relações e, até hoje, sinto algumas dores e incômodos com penetração. Então, pesquisando sobre o assunto, descobri que passei pelo “ponto do marido”.

Violência Obstétrica: Uma lente sobre raça, classe e neurodivergência

É importante entender que a violência obstétrica não é um monstro de uma cabeça só. Ela tem cor, CEP e diagnóstico. Mulheres negras são as mais submetidas a intervenções desnecessárias e dolorosas. Dados da Pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, publicados no estudo “A cor da dor”, revelam que mulheres negras têm mais de 50% de chance de não receber anestesia local durante a episiotomia em comparação com mulheres brancas. Além disso, somos as que menos têm um acompanhante de escolha e as que mais ouvem julgamentos e xingamentos durante o trabalho de parto.

Para mulheres periféricas, a falta de acesso à informação de qualidade e a dificuldade em acessar um pré-natal detalhado nos tornam alvos mais fáceis para a desumanização. Nossas queixas de dor são frequentemente vistas como “frescura” ou “dramatização”, expressões de um racismo institucional que nos ignora. E, como mulher autista, a superestimulação sensorial das luzes, barulhos e toques não consentidos foi intensa, transformando um processo que já era doloroso em um tormento sensorial, sem qualquer adaptação ou acolhimento para a minha neurodivergência.

Tipos de violência obstétrica

A partir do meu relato, quem já tem um conhecimento básico sobre o assunto, pode ter identificado alguns tipos de violência obstétrica que eu sofri.

Primeiramente, violência obstétrica é toda interferência dos médicos em procedimentos que deveriam ser “naturais”, além de xingamentos, maus-tratos e todo o tipo de absurdo que vemos nos partos afora./

  • Soro com ocitocina: Conforme dito acima, o soro com ocitocina faz com que o seu útero gere contrações, facilitando o tempo de trabalho de parto. A Organização Mundial de Saúde (OMS), em fevereiro de 2018, em suas novas diretrizes, recomenda que ele não seja usado de forma rotineira para acelerar o trabalho de parto de mulheres saudáveis;
  • Tocada sem autorização ou muitas vezes sem necessidade: O exame de toque é feito para ver o quanto o útero está dilatado para a saída do bebê, mas, feito várias vezes e sem necessidade, é considerado violência, ainda mais quando é feito por estudantes sem autorização da grávida;
  • Humilhações, xingamentos, preconceito: Falar para a mãe que ela está louca, descontrolada é também uma violência. Além disso, dizer palavras como “quando abriu as pernas não pensou na dor”, ou outras coisas ainda piores, como agredir fisicamente;
  • Episiotomia: Este procedimento é feito para facilitar a saída do bebê, ou seja, ampliar o canal de parto que consiste em fazer uma incisão na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus). Segundo o site “Tua saúde”, as principais sequelas deste procedimento são: incontinência urinária; infecção no local do corte; aumento do tempo de recuperação do pós-parto;
  • Ponto do Marido: Este procedimento é pouco conhecido, mas muitas mulheres já passaram por ele sem saber. Este é um “ponto a mais” que é feito quando a sutura da Episiotomia está sendo feita. Este ponto é chamado assim, pois acredita-se que a vagina vai ficar mais “apertada” para o companheiro. “O ponto do marido é um ponto que se faz ao término da sutura de uma episiotomia, onde se ‘aperta’ a entrada da vagina, com o intuito de torná-la mais estreita, teoricamente aumentando a satisfação sexual do marido”;
  • Manobra de Kristeller: Ao subirem na minha barriga e fazerem força para baixo nela, senti dores, afinal, duas mulheres em cima de mim. Este procedimento é chamado de manobra de Kristeller que consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar (e acelerar) a saída do bebê.

Essas são as violências que sofri há quase  15 anos quando meu pequeno nasceu. Existem muitas outras e mulheres ainda passam por isso, mesmo depois de tanto tempo. Eu não tinha tanto conhecimento que agora, se não, teria denunciado, mas hoje isso pode ser feito através da Defensoria Pública válido para serviço público ou privado, ou pelo telefone no 180 (Violência contra mulher) ou 136 (Disque Saúde). 

Fale com outras mulheres, busque aprender sobre seu corpo, sobre violência obstétrica porque, quanto mais conhecimento temos sobre o assunto, mais podemos lutar contra ele.

Jo Melo É mãe, jornalista, escritora e fundadora da revista Mães que Escrevem. Especialista em Comunicação/Marketing e Jornalismo Digital, é também mestranda em Estudos Linguísticos pela UNIFESP. Diagnosticada como autista na idade adulta, possui hiperfoco em escrita e linguagens. É Imortal pela Academia Mundial de Letras e autora premiada na Suíça, com os livros Os Cinco Sentidos e Hipérboles. — @jomelo.escritora

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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